Estou passando por um momento um tanto complicado na minha vida nestes últimos dias e fato é que ninguém tem nada a ver com isso. Ainda assim prefiro acreditar que estou sendo correta e agindo de acordo com a minha sensibilidade e quem sabe este relato clareie as idéias de algumas pessoas, toque o íntimo de outras, lave a alma de algumas ou no mínimo ajude alguém a praticar o ato da leitura.
Há dois meses fui chamada para atuar como professora de artes, na rede estadual de ensino do Rio Grande do Sul, em contrato de caráter emergencial. Uma vida nova pra mim! Sempre quis trabalhar na minha área, fazendo o que sei e o que realmente gosto. Trabalhar com crianças e adolescentes passou a ser minha rotina. Desde então fiz muitas descobertas, alegre e realizada com a experiência, dividi com meus amigos no facebook algumas impressões como estas:
"Entrar em sala, conseguir deixar de lado os problemas, e olhar abertamente para o aluno e o aceitá-lo como ser único e especial, seja ele como for. É tão maravilhoso perceber quanto se pode fazer a diferença na vida de alguém com gestos muitos simples e ao mesmo tempo quanto crescemos e nos tornamos melhores enquanto ser humano. Acho que ando mais aprendendo do que ensinando... #escoladavida"
"Ser professora esta me propiciando experimentar o sentimento de responsabilidade pela vida e pela evolução mental, motora, emocional e social dos seres com quem trabalho. É lindo, gratificante, emocionante e este é o melhor salário que se pode receber".
Em pouco tempo já são muitos aprendizados, mas certamente nada perto do que ainda esta por vir. Até aqui tudo bem, os maiores problemas são pequenos diante da alegria de estar fazendo algo em que acredito ser essencial na vida dos seres humanos com quem trabalho. Talvez acordar todo dia antes das seis da manhã, organizar dezesseis turmas e conciliar três escolas seja sim trabalhoso, mas dá pra encarar.
Difícil são as adversidades da vida como sempre diz o meu pai. Difícil mesmo é encarar que muitos seres humanos ainda não estão preparados para encarar o diferente, estão inaptos a exercer a inclusão e tudo por falta de bom senso e de sensibilidade. Difícil é aceitar que ainda exista preconceito num mundo de tanta diversidade como o nosso.
Vou ser mais clara. Para os que acompanham o blog, para os que me conhecem, sabem que tenho um problema de visão, e que devido a isto, me encaixo no termo "portadora de necessidades especiais", sim, eu sou deficiente visual. Esta certo que sou uma pessoa completamente adpatada a estas necessidades, praticamente não faço uso de recursos ópticos ou coisas do tipo, eu nunca me vi assim, mas pela lei e pelo senso comum sou sim uma deficiente visual, o que não é motivo de vergonha, principalmente porque estou descobrindo que ha seres humanos com deficiências muito mais graves que as mentais, visuais, físicas, psíquicas e tal.
Para resumir a história, tive de fazer uma perícia médica para poder ser admitida, só que esta perícia só aconteceu de fato depois de eu ja estar em sala de aula ha quase dois meses. Entre a primeira e a segunda consulta, com laudos minuciosos e exames que me foram exigidos, fui dada como inapta. Inicialmente fiquei surpresa, afinal tenho um diploma de licenciada em arte, conclui ensino fundamental e médio nas mesmas condições que qualquer outra criança, nunca tendo amparo de avaliações por parecer como acontece hoje. Depois da surpresa veio a rima pobre, a tristeza.
Tudo bem que o que não mata fortalece e ninguém tem a cruz mais pesada do que a que se pode carregar, mas vamos combinar, inapta não! Eu tenho auto-estima suficiente para saber que tenho competência para desenvolver as minhas tarefas, tenho segurança suficiente para afirmar que sou capaz e tenho amor próprio e respeito ao próximo para saber que devo lutar pelos meus direitos e dos muitos que iguais a mim sofrem algum tipo de discriminação.
Acredito que um simples laudo médico não é capaz de mensurar minhas habilidades e competências para o trabalho que exerço e muito menos possa medir minha sensibilidade para atuar como formadora de seres humanos. Sempre fui uma criança que fez tudo igual as outras, fiz dança, balet clássico, curso disso, daquilo, e sou produto sim da inclusão. Quando chegou a hora de escolher meu curso superior, o fiz sem influência de ninguém, nem porque era fácil ou difícil de entrar. Eu sempre acreditei no meu potencial e nunca medi esforços para conseguir as coisas que desejei neste tempo todo.
Eu sou produto da inclusão, inclusão ja dentro da minha casa, pois tive o apoio, compreensão, amor e carinho dos meus pais e familiares. Inclusão exercida no centro de apoio para deficientes visuais, inclusão exercida pelos colegas e professores das escolas onde estudei, pelas chefias e colegas de trabalho nas empresas em que trabalhei. Posso afirmar de forma categórica, que mais do que ser um produto da inclusão, sou uma pessoa que sempre foi acolhida, respeitada e amada pelas pessoas que escolhi para conviver, estudar e trabalhar. Eu posso dizer que construí uma história linda para mim, cercada de gente do bem. Nem sempre foi fácil, mas nunca foi tão complicado como agora.
Com 25 anos, é lamentável ter de passar por uma situação dessas. Saber das minhas capacidades, e ainda assim ter de sair de sala de aula, rompendo os vínculos que estava começando a criar com seres humanos tão especiais que ainda muito vão me ensinar, deixar colegas e instituições sérias sem um profissional qualificado para a área é frustrante e desmotivador.
Ainda assim, sigo em frente, estou tentando reverter esta situação, brigando pelo que é justo e certo. Com tudo, é impossível dizer que não dói, preciso dizer que é doloroso passar por isso e ver gente passando por isso todos os dias. E triste pregar para os meus alunos a aceitação, o respeito, o olhar com o coração, sabendo que no"mundo dos adultos" a inclusão é algo que ainda não acontece como deveria, que ainda existe sim o preconceito, que as pessoas ainda sofrem por serem discriminadas.
Acredito sim que voltarei para sala de aula, farei o que estiver ao meu alcance e conseguirei o que é direito meu, exercer a profissão para a qual estou habilitada. Sei que conseguirei fazer com que me olhem e percebam que sou igual a todas as pessoas. De qualquer forma, assim como a palavra dita não volta, o sentimento de frustração, o constrangimento e principalmente a tristeza de deixar meus alunos e de não poder exercer a profissão que amo são sentimentos que jamais esquecerei. Dinheiro algum poderá me devolver o que este misto de sensações me causou psicológica e emocionalmente. Só o tempo irá amenizar esta dor, irá talhar meu coração para se moldar novamente ao meu peito com estes novos machucados, e então sim, poderei me dizer mais fortalecida, mesmo que tenha sido no aprendizado através da dor.
Para mim é muito claro que não existe um culpado nesta história, o que existe sim são pessoas que simplesmente exercem seu trabalho de forma superficial, que só pensam em si, que são insensíveis a situação e condição do outro, que não tem a capacidade de enxergar com o coração, e é para estes que eu digo, tais deficiências são muitos piores do que a minha, do que a de qualquer outro ser que por algum motivo seja diferente, seja ele deficiente ou não.
Agora peço a licença de fazer um pedido. Antes de fazer qualquer julgamento a respeito de outra pessoa procure conhecê-la, entender sua realidade, suas necessidades e motivações para ser do jeito que é, e acima de tudo, respeite-a, porque antes de ser diferente, ser negra ou branca, gorda ou magra, hétero ou homossexual, deficiente ou não, esta pessoa é um ser humano e tem sentimentos.
Sem respeito e sensibilidade ao próximo a inclusão jamais irá acontecer e não é este o mundo que eu quero para os meus filhos.
Encerro este texto ainda com o coração partido, e com a triste certeza de que para mim e para muitos, esta é só mais uma luta, a batalha somente chegará ao final no dia em que eu não estiver mais aqui.
Natalia Bianchi, portadora de deficiência visual, capaz, bem resolvida e mais leve agora!
Sugiro aqui algumas reflexões:
"O quer importa não é aquilo que fizeram de ti, mas o que vai fazer com o que fizeram de ti" (Sartre)
"Os limites da minha linguagem denotam os limites do meu mundo".(Ludwig Wittgenstein)
“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos...(Art. 1º)”
Declaração Universal do Direitos Humanos (1948)
" O universalismo que queremos hoje é aquele que tenha como ponto em comum a dignidade humana. A partir daí, surgem muitas diferenças que devem ser respeitadas. Temos direito de ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza." (Boaventura de Souza Santos)
..."Sem a Educação das Sensibilidades, todas as Habilidades são tolas e sem sentido"...(Rubem Alves)